Menino ou menina??





Um casal que faz um teste de sexagem do bebê antes de nascer e vê que ele tem os cromossomos sexuais XY. Portanto, seria um menino. Mas depois a mãe faz um ultrassom e vê uma genitália feminina. Pessoas com insensibilidade completa a andrógenos [hormônios masculinos], apesar de serem XY, são mulheres, têm um corpo totalmente feminino, quase sem pelos, já que não têm hormônio masculino. Essas mulheres só não menstruam porque não têm útero – o testículo, ao se desenvolver, produz um hormônio que faz o útero involuir –, mas têm vagina em fundo cego, que permite atividade sexual após dilatação vaginal.

Nos Jogos Olímpicos de 1988, a corredora espanhola Maria Patiño perdeu a medalha que havia ganho porque na época era analisado o cariótipo [conjunto de cromossomos] dos atletas e viram que ela era XY como os homens, embora fosse mulher, completamente feminina, sem nenhum benefício da testosterona, o hormônio masculino. A medalha foi devolvida anos mais tarde.

Como é um homem XX, com dois cromossomos sexuais iguais? Tem pênis, testículo, bolsa escrotal e uretra fálica, tudo normal. Mas tem também ginecomastia, ou seja, desenvolve mamas na época da puberdade, e é infértil. Um paciente XX fez cinco exames de cariótipo porque não acreditava no resultado. O homem se pergunta: “Como posso ter um cariótipo de mulher, se sou homem?”. Essa é uma semântica que temos de mudar. Uma paciente que atendo é uma menina 46,XX que tem ovários, útero e do lado externo era um menino sem testículo, com uretra fálica. O quadro foi revertido por meio de cirurgia para reconstrução da genitália feminina e hoje ela é uma menina com vida normal.

O que nos faz ser homem ou mulher, do ponto de vista da genitália externa, é a presença ou ausência do hormônio masculino, a testosterona, que é convertida nos tecidos periféricos em diidrotestosterona, que no feto masculino vai fazer as pregas genitais internas se fundirem e formarem o corpo da uretra e as pregas genitais externas, a bolsa escrotal. O tubérculo genital vira clitóris na mulher e glande no homem. É um processo anatômico, físico, que acontece da 8ª até a 12ª semanas de gestação. Se a mulher estiver grávida de uma menina e produzir ou receber uma dose acima do normal de hormônio masculino nesse período, ela nasce com genitália masculinizada, induzida pelos andrógenos. Ao contrário, se uma gestante de um menino tomar muita progesterona [hormônio encontrado em maior quantidade no corpo feminino] para evitar um aborto, pode ocorrer uma hipospádia, quer dizer, a abertura da uretra fica abaixo da glande. A progesterona compete com a testosterona pela ação da enzima 5-alfa-redutase e se produzirá menos diidrotesterona, que é o que viriliza a genitália externa. O resultado é que a uretra vai se abrir no períneo, como a uretra feminina, ou no meio do corpo peniano. Em toda gravidez de alto risco os ginecologistas aplicam muita progesterona para evitar a perda do feto, o que pode causar hipospádia.

Agora se diz genitália atípica, mas parece que os termos sempre foram um problema nessa área. Sim, porque carregam uma grande carga de discriminação. Antes se falava em hermafroditismo ou pseudo-hermafroditismo para chamar as crianças que nascem com malformação dos genitais. Os indivíduos são masculinos ou femininos, mas há genitália que não é nem totalmente masculina nem totalmente feminina, por um erro de desenvolvimento, assim como existem pessoas com malformação cardíaca ou outro problema qualquer. Agora se fala crianças com genitália ambígua ou atípica ou diferente. Nos questionários que aplico aos pais aqui no hospital, o termo mais aceito é malformação dos genitais.

Nesses casos, ainda é comum o erro médico. Erro de diagnóstico, de conduta e de orientação para os pais. Quem não tem muito treinamento tenta definir rapidamente para se livrar da angústia de não saber, mas muitas vezes a aparência externa não é o melhor critério para definir o sexo. Uma criança muito virilizada tende a ser registrada como menino, embora possa não ser. Outro problema é que muitos convênios de saúde não pagam os exames necessários, inclusive o cariótipo de recém-nascidos, ainda que a legislação exija. Por isso, sempre oriento os estudantes e colegas: “Se estiver em dúvida, não assuma a responsabilidade de atribuir o sexo ao recém-nascido sem os exames necessários”. Além do cariótipo, outros exames, como a dosagem de hormônios e ultrassom da região pélvica para visualização dos genitais internos e das gônadas, podem ser necessários para a definição precisa do sexo. Alguns médicos já foram processados por atribuírem sexo errado a um recém-nascido, porque a mudança formal de sexo impõe um custo, tem de abrir processo e ir ao juiz, além de causar estresse emocional aos pais e à família. Os médicos devem assumir que não estão seguros e indicar aos pais um hospital especializado. E não só eles: a equipe inteira tem de falar a mesma língua: “Essa criança nasceu com alteração no desenvolvimento sexual. Para definir o sexo, terá de fazer alguns exames. No momento, vamos chamar apenas de bebê”. Se perguntarem qual é o nome, pode dizer que a família ainda está discutindo.

Sobre um caso de uma paciente com insensibilidade completa a andrógenos, com cariótipo XY. Ela já tinha tirado os testículos, que nesses casos não funcionam e em geral são internos. Ela tinha um relacionamento normal com o namorado, com atividade sexual. Ela contava para o namorado que não podia ter filhos por ter tido uma alteração no desenvolvimento do útero. Mas não falava sobre o cariótipo, o conjunto de cromossomos de uma pessoa, porque ela era XY, enquanto a maioria das mulheres é XX. Quando resolveram viver juntos, ela decidiu contar ao namorado que era XY e ele disse que não via nenhuma diferença. Ela é mulher, a testosterona não funciona. Alguns pacientes têm pavor do cariótipo, um deles me pediu para pôr fogo no exame, como se mudasse alguma coisa. O cariótipo isoladamente não quer dizer absolutamente nada. A maioria dos homens é 46,XY [44 cromossomos autossômicos e dois cromossomos sexuais, X e Y] e as mulheres, 46,XX. Mas uma em cada 25 mil mulheres tem cariótipo 46,XY e um em cada 25 mil homens tem cariótipo 46,XX.

FONTE:
FIORAVANTI, Carlos. Berenice Bilharinho de Mendonça: O drama dos hormônios. 2017. Disponível em: <http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/05/23/berenice-bilharinho-de-mendonca-o-drama-dos-hormonios/?cat=ciencia>. Acesso em: 26 out. 2017.

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